Em Crônica de Banalidades Ordinárias proponho uma reflexão acerca da noção de normalidade. Não seria o dito “normal” apenas um conjunto de situações cuja leitura já aprendemos? Situações eleitas, geralmente por sua funcionalidade, para ingressarem no fluxo produtivo do dia a dia? Entre essas eleições, uma série de passagens que, se fixadas, seriam classificadas como estranhas – mas que nos são tão próximas e recorrentes quanto “o normal”.
Para dar corpo a essa proposição, sobreponho os espaços do absurdo e do cotidiano - e crio, através de performance para a câmera, cenas que apresentam espaços domésticos bastante familiares, povoados por objetos banais fora de contexto e atravessados por gestos flagrados fora de sua funcionalidade. Gestos que habitam a vida ordinária, mas subvertem seus modos e razões; que esgarçam as fronteiras do habitual, sugerindo narrativas fantásticas e, ao mesmo tempo, um cheiro comum.
As cenas congelam frações de absurdo que residem nos acontecimentos ordinários e que geralmente passam desapercebidas. Ecoam um certo humor inexpressivo e desconcertado, de quem percebe que aquele estranho também o espelha. São, dentro dos usos e interesses comuns atribuídos à fotografia, anti-fotográficas (opõem-se ao “instante decisivo”; opõem-se ao “momento memorável” – ou instagramável). Confrontam e desafiam a legitimidade das convenções comportamentais estabelecidas pela sociedade da produtividade e da busca por aprovação.
Texto de Ronaldo Entler
Curador da exposição para o Nova Fotografia | MIS-SP (2019)
O estranho aparece sempre deslocado. Ele pertence a outro lugar, é alheio, estrangeiro, mas só é assim percebido porque se infiltra num espaço familiar. É justamente a dificuldade de situá-lo que o torna tão perturbador. Como o homem de aparência desagradável que Freud conta ter visto de relance num trem e que, por fim, revela ser seu próprio reflexo num espelho (O inquietante, 1919). No final das contas, o estranho está sempre próximo, às vezes dentro, na distância imposta pelas cisões que nos habitam.
A normalidade com que ele irrompe não é mais que a ilusão de uma regularidade que só existe porque o olhar se agarra aos momentos que lhe são mais legíveis e confortáveis. O estranho tem também sua recorrência, mas se esconde nesses outros instantes não eleitos e pouco decifráveis em que o gesto aparece descolado de sua funcionalidade, desprovido do desenho final que o olhar lhe atribui quando reconhece nele uma eficiência.
Neste trabalho, Sylvia Sanchez encena com seu próprio corpo ações que sobrepõem os espaços supostamente antagônicos do estranho e do cotidiano. Suas imagens não têm como referência os pesadelos, os contos fabulosos, os filmes de horror ou os hábitos exóticos de comunidades distantes. O projeto nasce de um acontecimento corriqueiro apreendido pelo meio, numa configuração ainda não plenamente funcional, quando sua mãe busca uma posição para desamassar o forro de um antigo casaco pendurado na porta de seu guarda-roupa.
A partir disso, a artista inventa situações domésticas, constituídas por elementos bastante familiares, mas atravessadas por gestos que parecem semear uma narrativa fantástica. Ela faz durar diante do olhar - como um fantasma que decide não mais se esconder - a fração de absurdo que reside nos acontecimentos ordinários.
Fotos da exposição no MIS-SP (jul/ago 2019)